domingo, 29 de abril de 2012

A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado no âmbito da função Administrativa


Até o séc. XIX, a ideia de obrigar o Estado a suportar as consequências dos seus actos era completamente desconhecida. A vontade do soberano resultante em danos não gerava qualquer obrigação de indemnizar. Apesar de não estar excluída, a indemnização a particulares  dependia da ‘’mercê’’ do Estado. Entendia-se que o vínculo jurídico entre funcionário público e o Estado se enquadrava no mandato civil – somente os actos legais daquele seriam imputados contra este. Relativamente aos actos ilegais, estes seriam imputados directamente aos autores (pois os actos praticados ao abrigo do mandato não poderiam ser ilegais). Naturalmente, predominava a sensação de receio entre os funcionários no desempenho das suas funções, pondo em causa a eficiência e a estabilidade da actividade administrativa. Posto isto, e atendendo à necessidade de consolidação e aprofundamento do princípio da legalidade no âmbito do alargamento da intervenção económica, social e cultural do sector público, deu-se início à evolução no sentido da responsabilização do Estado.
O regime legal que actualmente regula a situação em apreço é a Lei nº67/2007, de 31 de Dezembro – Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. O dito diploma normativo tem o seu âmbito de aplicação subjectivamente delimitado  às pessoas colectivas públicas (Estado, Regiões Autónomas e demais pessoas colectivas de direito público), às pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade, e a certas pessoas singulares (titulares de orgãos, agentes ou funcionários de pessoas colectivas e direito público; magistrados judiciais e do M.P, trabalhadores de pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade, titulares de orgãos sociais destas empresas e seus representantes legais). Quanto à sua delimitação objectiva, esta engloba os danos resultantes do exercício da função politico-legislativa, jurisdicional e administrativa. Pretende-se normatizar a acção de todas as funções do Estado, excepto os danos decorrentes da privação de liberdade ilegal ou injustificada e da condenação penal injusta (artºs 225º, 226º e 242º do CPP).
O Estado, particularmente no âmbito da função administrativa, pode ser responsabilizado por facto ilícito (artº 7º a 10º) ou pelo risco (artº 11º). Contudo, neste comentário , apenas será abordado o primeiro. O artº22 CRP refere-se à responsabilidade civil de forma solidária do Estado, retirando assim a responsabilidade pessoal exclusiva dos titulares do orgãos, funcionários ou agentes. Passa-se a fazer a distinção entre esta e a responsabilidade exclusiva da administração. De modo a justificar a responsabilidade solidária, deve haver uma conexão entre os actos de violação de direito ou interesses dos particulares e a relação de serviço. Verifica-se deste modo que a responsabilidade das entidades públicas, em caso de culpa leve dos titulares dos orgãos, funcionários ou agentes, continua a ser própria e exclusiva (7º/1). No entanto, quando estes actuam com dolo ou culpa grave, a responsabilidade é solidária (8º/1) (havendo direito de regresso por parte do Estado). Entende-se que a expressão  ‘’no exercício da função administrativa’’,  consagrada no artº7º/1, se refere à noção de acto de gestão pública – ou seja, actos praticados por titulares de orgãos, funcionários ou agentes, sob o domínio de normas de normas administrativas. Não estando no exercício da actividade administrativa, submete-se ao regime de direito privado (visto que se estaria numa posição de igualdade com o particular). Quer se considere que o dano foi causado com culpa grave (8º) ou culpa leve (7º), a acção poderá sempre ser intentada contra a administração, pois mesmo em caso de culpa grave, incorrerá em responsabilidade solidária. Caso se entenda que há culpa leve do funcionário, exclui-se o litisconsórcio voluntário, pois a acção terá de ser proposta contra a entidade pública. O artigo 7º/3 dispõe sobre a chamada ‘’culpa de serviço’’ para os casos em que há um funcionamento anormal do serviço, podendo distinguir a ‘’culpa colectiva’’ da ‘’culpa anónima’’.  A primeira ocorre quando os danos não podem ser directamente imputados a um comportamento concreto de um titular de um orgão, mas é fruto da actuação geral em que a causa do dano é dispersa por intervenientes ou sectores distintos. Em suma, deve-se a uma deficiência de funcionamento do serviço. A ‘’culpa anónima’’ ocorre na presença de um comportamento concreto de um agente, que no entanto não se pode determinar. O dano é imputável a uma pessoa em concreto, mas não se consegue individualizar o autor pessoal do facto lesivo. Nestas situações do 7º/3, há responsabilidade exclusiva do Estado, não havendo direito de regresso. O nº4 do artº 7º faz uma referência a o que se entende por ‘’funcionamento anormal do serviço’’, atendendo a um critério de razoabilidade apreciado em abstracto com base no rendimento médio exigível no caso concreto.
Tal como foi previamente referido, os casos de responsabilidade solidária do Estado relativamente aos actos danosos dos titulares dos orgãos, funcionários ou agentes com culpa grave dão azo ao direito de regresso por parte da administração pública. O artigo 6º prevê mesmo a obrigatoriedade do exercício deste direito por parte das pessoas colectivas públicas nos casos especialmente previstos no diploma. As situações que dão lugar ao exercício do direito de regresso e que se encontram cobertas pelo regime de obrigatoriedade legalmente previsto encontram-se elencadas nos artigos 8º, 11º/2 e 14º do diploma. O artigo 8º abrange acções ou omissões cometidas  com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores áqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo. Importa ainda referir que o direito de regresso é uma mera consagração do disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa, que dispõem, por um lado, sobre a responsabilidade solidária da Administração, e, por outro, sobre a responsabilidade pessoal dos titulares de orgãos, funcionários e agentes (no âmbito da responsabilidade por facto ilícito, que é o que está a ser tratado na presente publicação). É o próprio número 5 do artigo 271º que remete para a lei ordinária a regulamentação dos termos em que esse direito pode ser exercido por parte da pessoa colectiva pública. 

Quanto à sua inserção no âmbito do procedimento administrativo, as acções de responsabilização do Estado e o respectivo direito de regresso seguem a forma de acção comum (art. 37º/1 e 37º/2 f)), cabendo no regime do Título II do CPTA. Tem-se em conta particularmente o art. 38º/1, que permite ao tribunal conhecer da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado no que toca ao domínio da responsabilidade civil da administração e o art. 38º/2, que indica que a acção comum não pode utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação do acto inimpugnável.
 Em relação à legitimidade activa (já tendo a passiva sido analisada supra), esta cabe a quem se arrogue um prejuízo efectivo causado pela actividade ou omissão pública. É este que pode alegar ser parte na relação material controvertida. Quando teham sido ofendidos determinados valores comunitários, admite-se a acção popular para a apresentação de pedidos de indemnização dos lesados (art. 52º/3 CRP).
Atendendo à regra geral prevista para a acção comum, a acção pode ser intentada a todo o tempo (art.41º/1 CPTA), com a ressalva do disposto na lei substantiva. No seguimento desta ressalva, faz-se referência ao art. 5º do RRCEEDEP que remete para o regime da prescrição do respectivo direito à indemnização (previsto no art. 498º do Código Civil), permitindo a conclusão de que se aplica o prazo de prescrição de 3 anos a contar do conhecimento do lesado desse seu direito. Há que se ter em conta ainda o art. 41º/3 CPTA, que indica que em caso de impugnação do acto lesivo, ou perante a verificação de outras causas suspensivas ou interruptivas, o prazo interromper-se-à nos termos gerais da prescrição.
Antes de partir para o último ponto, é importante fazer uma breve referência à eventualidade de verificação de negligência processual por parte do lesado, cuja consagração legal do regime se encontra no artigo 4º do RRCEEDEP. Segundo este preceito, pode haver redução ou exclusão da indemnização devida ao lesado quando a negligência processual do lesado tenha contribuido para a produção ou agravamento dos danos causados. Fala-se das situações em que não foi utilizada a via processual adequada.
Para finalizar, cabe dizer que as estas questões são normalmente julgadas pelos TACs, mas também eventualmente pelos Tribunais Arbitrais (art. 180º/1 b) CPTA). A sentença positiva tem efeitos condenatórios que consistem, em primeiro plano, na reintegração natural da situação por prestação de facto e, eventualmente, no pagamento de uma indemnização pecuniária. 



Yassir Khalid        nº18456