Até o séc.
XIX, a ideia de obrigar o Estado a suportar as consequências dos seus actos era
completamente desconhecida. A vontade do soberano resultante em danos não gerava
qualquer obrigação de indemnizar. Apesar de não estar excluída, a indemnização
a particulares dependia da ‘’mercê’’ do
Estado. Entendia-se que o vínculo jurídico entre funcionário público e o Estado
se enquadrava no mandato civil – somente os actos legais daquele seriam
imputados contra este. Relativamente aos actos ilegais, estes seriam imputados
directamente aos autores (pois os actos praticados ao abrigo do mandato não
poderiam ser ilegais). Naturalmente, predominava a sensação de receio entre os
funcionários no desempenho das suas funções, pondo em causa a eficiência e a
estabilidade da actividade administrativa. Posto isto, e atendendo à
necessidade de consolidação e aprofundamento do princípio da legalidade no
âmbito do alargamento da intervenção económica, social e cultural do sector
público, deu-se início à evolução no sentido da responsabilização do Estado.
O regime
legal que actualmente regula a situação em apreço é a Lei nº67/2007, de 31 de Dezembro – Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. O dito diploma
normativo tem o seu âmbito de aplicação subjectivamente delimitado às pessoas colectivas públicas (Estado,
Regiões Autónomas e demais pessoas colectivas de direito público), às pessoas
colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade, e a certas
pessoas singulares (titulares de orgãos, agentes ou funcionários de pessoas
colectivas e direito público; magistrados judiciais e do M.P, trabalhadores de
pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade,
titulares de orgãos sociais destas empresas e seus representantes legais).
Quanto à sua delimitação objectiva, esta engloba os danos resultantes do
exercício da função politico-legislativa, jurisdicional e administrativa.
Pretende-se normatizar a acção de todas as funções do Estado, excepto os danos
decorrentes da privação de liberdade ilegal ou injustificada e da condenação
penal injusta (artºs 225º, 226º e 242º do CPP).
O Estado,
particularmente no âmbito da função administrativa, pode ser responsabilizado
por facto ilícito (artº 7º a 10º) ou pelo risco (artº 11º). Contudo, neste
comentário , apenas será abordado o primeiro. O artº22 CRP refere-se à
responsabilidade civil de forma solidária do Estado, retirando assim a
responsabilidade pessoal exclusiva dos titulares do orgãos, funcionários ou
agentes. Passa-se a fazer a distinção entre esta e a responsabilidade exclusiva
da administração. De modo a justificar a responsabilidade solidária, deve haver
uma conexão entre os actos de violação de direito ou interesses dos
particulares e a relação de serviço. Verifica-se deste modo que a
responsabilidade das entidades públicas, em caso de culpa leve dos titulares
dos orgãos, funcionários ou agentes, continua a ser própria e exclusiva (7º/1).
No entanto, quando estes actuam com dolo ou culpa grave, a responsabilidade é
solidária (8º/1) (havendo direito de regresso por parte do Estado). Entende-se
que a expressão ‘’no exercício da função
administrativa’’, consagrada no artº7º/1,
se refere à noção de acto de gestão pública – ou seja, actos praticados por
titulares de orgãos, funcionários ou agentes, sob o domínio de normas de normas
administrativas. Não estando no exercício da actividade administrativa,
submete-se ao regime de direito privado (visto que se estaria numa posição de
igualdade com o particular). Quer se considere que o dano foi causado com culpa
grave (8º) ou culpa leve (7º), a acção poderá sempre ser intentada contra a
administração, pois mesmo em caso de culpa grave, incorrerá em responsabilidade
solidária. Caso se entenda que há culpa leve do funcionário, exclui-se o
litisconsórcio voluntário, pois a acção terá de ser proposta contra a entidade
pública. O artigo 7º/3 dispõe sobre a chamada ‘’culpa de serviço’’ para os
casos em que há um funcionamento anormal do serviço, podendo distinguir a
‘’culpa colectiva’’ da ‘’culpa anónima’’.
A primeira ocorre quando os danos não podem ser directamente imputados a
um comportamento concreto de um titular de um orgão, mas é fruto da actuação
geral em que a causa do dano é dispersa por intervenientes ou sectores
distintos. Em suma, deve-se a uma deficiência de funcionamento do serviço. A
‘’culpa anónima’’ ocorre na presença de um comportamento concreto de um agente,
que no entanto não se pode determinar. O dano é imputável a uma pessoa em
concreto, mas não se consegue individualizar o autor pessoal do facto lesivo.
Nestas situações do 7º/3, há responsabilidade exclusiva do Estado, não havendo
direito de regresso. O nº4 do artº 7º faz uma referência a o que se entende por
‘’funcionamento anormal do serviço’’, atendendo a um critério de razoabilidade
apreciado em abstracto com base no rendimento médio exigível no caso concreto.
Tal como foi
previamente referido, os casos de responsabilidade solidária do Estado
relativamente aos actos danosos dos titulares dos orgãos, funcionários ou
agentes com culpa grave dão azo ao direito de regresso por parte da
administração pública. O artigo 6º prevê mesmo a obrigatoriedade do exercício
deste direito por parte das pessoas colectivas públicas nos casos especialmente
previstos no diploma. As situações que dão lugar ao exercício do direito de
regresso e que se encontram cobertas pelo regime de obrigatoriedade legalmente
previsto encontram-se elencadas nos artigos 8º, 11º/2 e 14º do diploma. O
artigo 8º abrange acções ou omissões cometidas
com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores áqueles a
que se encontravam obrigados em razão do cargo. Importa ainda referir que o
direito de regresso é uma mera consagração do disposto nos artigos 22º e 271º
da Constituição da República Portuguesa, que dispõem, por um lado, sobre a
responsabilidade solidária da Administração, e, por outro, sobre a
responsabilidade pessoal dos titulares de orgãos, funcionários e agentes (no
âmbito da responsabilidade por facto ilícito, que é o que está a ser tratado na
presente publicação). É o próprio número 5 do artigo 271º que remete para a lei
ordinária a regulamentação dos termos em que esse direito pode ser exercido por
parte da pessoa colectiva pública.
Yassir Khalid nº18456
Quanto à sua inserção no âmbito do
procedimento administrativo, as acções de responsabilização do Estado e o
respectivo direito de regresso seguem a forma de acção comum (art. 37º/1 e
37º/2 f)), cabendo no regime do Título II do CPTA. Tem-se em conta
particularmente o art. 38º/1, que permite ao tribunal conhecer da ilegalidade
de um acto administrativo que já não possa ser impugnado no que toca ao domínio
da responsabilidade civil da administração e o art. 38º/2, que indica que a
acção comum não pode utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação
do acto inimpugnável.
Em relação à legitimidade activa (já tendo a
passiva sido analisada supra), esta
cabe a quem se arrogue um prejuízo efectivo causado pela actividade ou omissão
pública. É este que pode alegar ser parte na relação material controvertida.
Quando teham sido ofendidos determinados valores comunitários, admite-se a
acção popular para a apresentação de pedidos de indemnização dos lesados (art.
52º/3 CRP).
Atendendo à regra geral prevista para
a acção comum, a acção pode ser intentada a todo o tempo (art.41º/1 CPTA), com
a ressalva do disposto na lei substantiva. No seguimento desta ressalva, faz-se
referência ao art. 5º do RRCEEDEP que remete para o regime da prescrição do
respectivo direito à indemnização (previsto no art. 498º do Código Civil),
permitindo a conclusão de que se aplica o prazo de prescrição de 3 anos a
contar do conhecimento do lesado desse seu direito. Há que se ter em conta ainda
o art. 41º/3 CPTA, que indica que em caso de impugnação do acto lesivo, ou
perante a verificação de outras causas suspensivas ou interruptivas, o prazo
interromper-se-à nos termos gerais da prescrição.
Antes de partir para o último ponto,
é importante fazer uma breve referência à eventualidade de verificação de
negligência processual por parte do lesado, cuja consagração legal do regime se
encontra no artigo 4º do RRCEEDEP. Segundo este preceito, pode haver redução ou
exclusão da indemnização devida ao lesado quando a negligência processual do
lesado tenha contribuido para a produção ou agravamento dos danos causados.
Fala-se das situações em que não foi utilizada a via processual adequada.
Para finalizar, cabe dizer que as estas
questões são normalmente julgadas pelos TACs, mas também eventualmente pelos
Tribunais Arbitrais (art. 180º/1 b) CPTA). A sentença positiva tem efeitos
condenatórios que consistem, em primeiro plano, na reintegração natural da
situação por prestação de facto e, eventualmente, no pagamento de uma
indemnização pecuniária.
Yassir Khalid nº18456