domingo, 22 de abril de 2012

Análise ao Artigo 71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos

Uma das principais inovações introduzidas pela reforma do contencioso administrativo, prende-se precisamente com os poderes atribuídos aos tribunais administrativos, nomeadamente a introdução do poder de condenar a Administração à prática de actos administrativos, bem como a substituição da anulação dos mesmos actos pelo poder de condenação à prática do acto devido, valendo, implicitamente, tal condenação como anulação. [1]

De acordo com o artigo 71º/1 do CPTA, quer em caso de omissão de resposta, quer em caso de recusa por parte da administração ao requerimento apresentado, o tribunal tem a obrigação de se pronunciar sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido, não se limitando a devolver a questão à administração.

Desta forma o tribunal irá, no fundo, avaliar a relação administrativa que existe entre o particular e a Administração através de um juízo material sobre o litígio, por forma a apurar qual o direito do primeiro e qual o dever da segunda.

É preciso ter em conta que, à partida, o tribunal deve deixar o exercício dos poderes discricionários pertencentes à Administração nas mãos desta, de modo a assegurar o princípio da separação de poderes.
Contudo, este poder discricionário, da exclusiva responsabilidade da Administração, que deve ser encarado casuisticamente, não deve porém ser livre ao ponto de não lhe ser imposto limites pelo tribunal, nomeadamente no que diz respeito a certos princípios e aspectos, tais como a competência, a proporcionalidade, a igualdade ou a imparcialidade, bem como determinar concretamente qual o âmbito e limites das vinculações legais.

A discricionariedade pode ser entendida como a liberdade, conferida à Administração, de decidir dentro do quadro das limitações que lhe são impostas legalmente.
Desta forma, são indispensáveis e necessárias as sentenças de condenação sempre que se esteja perante uma acção de condenação.

No final do nº 1 do artigo 71º CPTA, aparece a frase “impondo a prática do acto devido”. Neste âmbito, releva indagar acerca do significado deste acto devido.

Seguindo o entendimento de Mário Aroso de Almeida[2], podemos considerar dois parâmetros orientadores:
     - > Em primeiro lugar, para haver condenação, será necessário que a recusa ou omissão do acto tenha sido ilegal. Esta condenação será proferida quando a lei assim o impuser ou quando o tribunal considere que a Administração terá imperativamente que agir, de acordo com a pretensão do autor do pedido.
     - > Em segundo lugar, a condenação à prática do acto devido, não tem que corresponder estritamente à condenação à prática de um acto que esteja pré-determinado na lei, uma vez que também será possível condenar a Administração à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, desde que a emissão dos mesmos seja devida.

De acordo com o disposto no nº2 do artigo 71º CPTA, incumbe ao tribunal nas situações em apreço, explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.

Para o Professor Vasco Pereira da Silva [3], são duas as principais modalidades de sentenças que resultam do pedido de condenação à prática do acto devido:
     - > As que condenam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é determinado pela sentença. Estas sentenças impõem à Administração a prática de um acto administrativo devido, com um conteúdo pré-determinado.
     - > As que condenam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é indeterminado dado que estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração mas em que o tribunal deve indicar a forma correcta de exercício do poder discricionário, ao caso concreto, estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão.

Posto isto, como forma de tentar demonstrar como se pode aplicar, na prática, o disposto no artigo 71º CPTA, será feita uma breve análise de dois Acórdãos, sendo o primeiro um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul[4], cujo sumário expõe o seguinte:
Dos arts. 71º e 66º-2 do CPTA resulta o seguinte:
   a) Rejeição do modelo cassatório, porque há uma imposição legal para emitir certa decisão;
   b) O juiz deve se pronunciar (quase sempre?) sobre a pretensão material do interessado, seja no caso de omissão, seja no de indeferimento, seja no de recusa expressa de apreciação (afinal, o dever de decidir é um só, mas pode ser tripartido em dever de decidir de acordo com a pretensão, dever de decidir sobre o objecto da pretensão e dever de decidir sobre a pretensão);
   c) O caso concreto tanto pode permitir ao juiz que imponha à Adm. que decida com certo conteúdo, como pode permitir ao juiz que imponha à Adm. apenas que decida dentro de certos parâmetros vinculados (normas ou princípios aplicáveis, sentido interpretativo, fundamentação, etc.), como pode até chegar ao ponto mínimo de permitir ao juiz que imponha à Adm. apenas o cumprimento do dever de decidir ou de se pronunciar.

Resumo do Acórdão em questão:
Nesta situação estava em causa a pretensão de um particular à condenação da Administração à prática de um acto devido, no sentido de obter resposta ao direito que solicitava, pelo que o T.A.C. de Lisboa, decidiu condenar a Entidade Demandada a dar resposta fundamentada ao requerimento da autora.

A ré recorre para o Tribunal Central Administrativo Sul, da decisão proferida anteriormente pelo T.A.C de Lisboa, entendendo que o T.A.C de Lisboa não a poderia condenar a apreciar, porque a decisão material seria sempre de indeferimento.
O TCA Sul, porém, entendeu que a ré tem o dever legal de apreciar o pedido da autora, dever esse que foi violado.
Contudo, uma vez que não houver pronúncia administrativa expressa, não é possível ponderar no seu conteúdo necessariamente negativo no sentido de se concluir que não haveria necessidade de pronúncia expressa.

Como se verifica no caso em análise, o Tribunal impôs à Administração a prática do acto devido, admitindo ainda a possibilidade de apreciação da globalidade da relação administrativa, não podendo contudo fazê-lo enquanto a Administração não der uma resposta ao autor do pedido.

O segundo Acórdão, é um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte[5], cujo sumário explana o seguinte:
   I. O quadro legal definido no art. 106.º do RJUE, tal como acontecia com o regime jurídico fixado nos arts. 165.º e 167.º do RGEU, pauta-se pelo princípio da proporcionalidade, numa lógica de impor ao infractor o menor sacrifício possível, não se podendo ordenar a demolição de obras que, apesar de ilegalmente construídas, cumprem as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis, ou são susceptíveis de os vir a satisfazer.
   II. Tal significa que a demolição das obras ilegais tem de ser precedida por um juízo relativo à possibilidade das mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.
   III. Este regime não elege, assim, em caso de obra construída ilegalmente, a demolição como a única medida capaz de satisfazer interesse público visto prever o aproveitamento da construção, desde que a Administração reconheça que a mesma é susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares legalmente previstas para aquele local e tipo de edificação, salvaguardando-se, desta forma, não só as obras que, sem mais, cumpram aqueles requisitos, mas também as que, com modificações, possam vir a satisfazê-los.
   IV. A Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, for passível de ser legalizada.
   V. Consolidados todavia na ordem jurídica actos ordenadores da demolição de construções realizadas, nos quais se conclui pela insusceptibilidade ou inidoneidade de legalização, temos que o poder de ordenar a demolição e da levar a cabo se mostram ou se apresentam como vinculados, pelo que não faz sentido procurar-lhe imputar ilegalidades próprias daquele tipo de actos inseridos na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa”, mormente, a infracção ao princípio da proporcionalidade.
   VI. O poder de ordenar a demolição apresenta-se como vinculado logo que se mostre reconhecida a inidoneidade ou impossibilidade da operação de conformação do edificado com o quadro normativo tido por relevante e aplicável ao caso, poder esse
que se configura ainda como imprescritível visto do seu não exercício não cria ou confere direitos, nem pode conduzir à extinção dos respectivos poderes funcionais visto estarem em causa interesses públicos irrenunciáveis e indisponíveis.
   VII. Os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP.
   VIII. Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos, inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado, ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, etc.).
   IX. Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.

Resumo do Acórdão:
No caso em apreço, num primeiro momento, o TAF de Penafiel julgou procedente a acção de condenação em causa e condenou o Município “a dar executoriedade à demolição, no prazo de 10 (dez) dias úteis a contar do trânsito em julgado deste acórdão, proferindo um acto determinativo da posse administrativa do prédio da Contra-interessada ou qualquer outro acto, desde que, com aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela da legalidade urbanística …”.

Posto isto, o Município recorreu, alegando para tal, entre outros aspectos, que o tribunal “violou ainda o disposto no artigo 71.º, n.º 2, in fine, do CPTA, em virtude de não ter estabelecido as modalidades de actuação vedadas e apreciado a legalidade das questões prévias que fundamentaram e impediram a execução da demolição, condenando a autarquia à prática de um acto que não é vinculado e se enquadra na sua margem de discricionariedade, e abrindo a porta à discricionariedade onde deveria ter estabelecido vinculações a observar, determinando a prática de qualquer acto, com o único limite deste ter aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela administrativa …”.

O Tribunal Central Administrativo Norte, no âmbito do recurso, considerou que a decisão judicial impugnada não infringe o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CPTA, dado que a mesma mostra-se claramente proferida em consonância com os poderes administrativos conferidos na lei à Administração em sede de tutela da legalidade urbanística e em estrita observância dos limites de pronúncia conferidos ao tribunal “a quo”, pois, por um lado, atentou e considerou a margem de discricionariedade existente na opção entre as medidas de polícia urbanística tidas por mais adequadas, necessárias e proporcionais à situação e, por outro lado, na vinculação que impende sobre a Administração decorrente dos actos de demolição firmados na ordem jurídica enquanto caso resolvido e do dever de necessária implementação e concretização material em prazo razoável.

Do exposto podemos retirar algumas conclusões.
O Tribunal tem poder para apreciar a globalidade da relação administrativa e dessa forma também a totalidade do poder administrativo, considerando, quer elementos vinculados, quer discricionários, de modo a determinar e orientar a actuação da Administração.

É preciso ter em conta, tal como nos diz o Acórdão do TCA Norte, que a lei não regula sempre do mesmo modo os actos a praticar pela Administração, pois umas vezes a regulamentação legal é precisa (vinculação) e noutras é imprecisa (discricionariedade).

No mesmo Acórdão, o Tribunal consagra duas formas de limitação da discricionariedade da Administração:
      - > Uma primeira por intermédio de limites legais, nos quais se incluem:
 
.
a) A adequabilidade subjectiva do comportamento escolhido à realização do fim legal (o interesse público como meta padrão da escolha discricionária) (art. 266.º, n.º 1 da CRP);
 
.
b) O princípio da justiça que se traduz no dever da Administração harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados (art. 266.º, n.º 2 da CRP); e
 
. c) O princípio da imparcialidade (art. 266.º, n.º 2 da CRP).
  
      - > Uma segunda forma por força dos limites decorrentes da auto-vinculação que a Administração, no âmbito estrito das suas competências, cria com a elaboração de regulamentos externos pelos quais limita a sua própria discricionariedade, sendo que, no entanto, tal auto-vinculação só é legítima e válida quando não impeça a Administração Pública da ponderação do caso concreto enquanto liberdade concedida pela lei para discricionariamente prosseguir o interesse público.

Como refere a este propósito o Professor Vasco Pereira da Silva[6], as indicações quanto ao modo correcto de exercício do poder discricionário devem significar menos do que o tribunal substituir-se às escolhas da responsabilidade da Administração, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, mas devem ser também mais do que uma mera enumeração das vinculações legais à qual a Administração está sujeita, sob pena de violação do princípio da tutela judicial plena e efectiva, devendo o tribunal apreciar as vinculações que decorrem do ordenamento jurídico, casuisticamente, tendo em conta as circunstâncias de facto que rodeiam o caso em questão.



[1] Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida; GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO; 3ª Edição; 2007; pág. 118.

[2] Mário Aroso de Almeida; O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; 4ª Edição; 2005, Pág. 225.

[3]  Vasco Pereira da Silva; O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NO DIVÃ DA PSICANÁLISE; 2ª Edição, 2009,Pág. 392.

[4] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 01-03-2012; Processo 05821/10; Relator: PAULO PEREIRA GOUVEIA.
[5] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 27-05-2010; Processo 00240/08.4BEPNF; Relator: Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho.
[6] Vasco Pereira da Silva; O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NO DIVÃ DA PSICANÁLISE; 2ª Edição, 2009,Pág. 394.

Filipe Santos, aluno nº 18132

O Ministério Público no CPTA – Suas competências e suas atribuições (Parte II)



Após uma primeira parte em que já foram abordadas várias das competências do Ministério Público, vamos continuar com a nossa incursão no contencioso administrativo e descobrir o que mais lhe está reservado.
Assim, verificamos que o Minstério Público tem ainda legitimidade para pedir a condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido, nos termos do Artº. 68º, nº.1, c)-. Trata-se aqui da defesa do interesse público, mas também de direitos fundamentais e interesses difusos.
No âmbito da impugnação das normas e declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, tem o Ministério Público legitimidade para pedir a desplicação dessas normas logo que os seus efeitos se produzam, nos termos do Artº. 73º, nº.2. Já o nº.3 desse preceito permite um regime de excepção, permitindo ao Ministério Público, pedir a declaração da ilegalidade com força obrigatória geral, mesmo antes da recusa da aplicação por três casos concretos, por parte dos Tribunais, situação essa que é um requisito para os demais interessados. Tem, no entanto, a obrigação de pedir essa declaração com força obrigatória geral, logo que tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento da sua ilegalidade. Estamos aqui perante uma competência que mais não é que a defesa dos administrados, em relação a normas ilegais, ou seja, é o próprio Ministério Público que deve estar atento a esta situação, promovendo, dessa forma, a defesa dos mesmos. Trata-se, por isso, de uma atribuição muito importante e que deve ser levada muito a sério e com a maior diligência possível. Basta imaginar os danos que se poderiam originar com o continuar da aplicação destas normas.
Também a declaração de ilegalidade por omissão, prevista no Artº. 77º, nº.1 se reveste de enorme importância, porque, conforme a própria norma prevê, a ilegalidade por omissão pode impedir a exequibilidade de actos legislativos carentes de regulamentação. Mais uma vez, o que está aqui em causa é a defesa dos administrados, porque se “força” a aplicação de uma norma que permite que determinada situação seja apreciada e solucionada.
Uma outra competência que o Minstério Público tem é a que vem prevista no Artº. 85º. Aquando na citação dos interessados, prevista no Artº. 81º, nº.1, os autos são-lhe remetidos e este pode solicitar a realização de diligências instrutórias para, dessa forma, conseguir uma tomada de posição mais sólida e, dessa forma, perceber se a sua intervenção se justifica. E esta possibilidade é de tal forma forte que não é passível de controlo jurisdicional[1].
Pode pronunciar-se sobre o mérito da causa (já não sobre a legalidade processual), quando estão em causa os direitos fundamentais, interesses públicos e ainda interesses difusos (nº.2). Para isso, pode invocar causas de invalidade diversas das que foram arguidas na petição (nº.3). Pode ainda, suscitar quaisquer questões que determinem a nulidade ou inexistência do acto impugnado (nº.4). Temos aqui o Ministério Público como amicus curiae e, com estas hipóteses, possibilita-se, no fundo, que o mesmo prossiga aquilo para que foi criado, ou seja, dão-se-lhe condições e meios para que defenda da melhor forma os interesses que se propôs defender.
O Ministério Público tem ainda legitimidade para tratar de matérias relativas a contencioso eleitoral, conforme o Artº. 97º, nº.1, que remete para as normas do Artº. 50º ao Artº. 65º, bem como de matéria de contencioso pré-contratual, conforme o Artº 100º, nº.1 que remete para os mesmos Artsº. em cima referidos.
Para que o Minstério Público tenha acesso a todos os processos, documentos, certidões, etc., bem como, quando precisa da prestação de informações, pode intimar para ter acesso a tudo isso, conforme o que vem explanado no Artº. 104º, nº.2, para efeito do exercício da acção pública que o caracteriza. Tem toda a lógica este poder por parte do Minstério Público, já que, para bem apreciar, deve ter ao seu dispôr toda a informação relativa a todos os factos que importem para o seguimento da causa.
Pode ainda utilizar esse poder para a protecção de direitos, liberdades e garantias, nos termos do Artº. 109º, nº.1, quando não seja possível, em tempo útil, o decretamento provisório de uma providência cautelar e quando seja indispensável que a Adminstração adopte uma conduta positiva ou negativa.
Também em matéria de conflitos de competência jurisdicional e de atribuições, pode o Minsitério Público intervir e requerer a resolução dos mesmos, no prazo de um ano a contar da data em que se torne inimpugnável a última das decisões, conforme vem previsto no Artº. 136º.
Seguindo, encontramos uma competência importantíssima, prevista no Artº. 141º, nº2, que é a de interpor recurso ordinário de uma decisão jurisdicional, se a decisão tiver sido proferida com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais. Trata-se de um poder que tem toda a lógica, porque em muitas dessas situações, as acções poderão ter sido propostas pelo próprio Ministério Público ou este pode ter sido o representante do Estado. Assim, mal seja perceptível que a decisão do Tribunal não levou em conta disposições ou princípios constitucionais ou legais, deve o Ministério Público recorrer imediatamente. É um ónus, apesar da lei determinar apenas que pode fazê-lo. Se não o fizer, aquilo para que existe cai por terra e a sua atribuição de defender os interesses, não só do Estado, mas também dos administrados, não é cumprida, indo, assim, contra a sua razão de existir.
No seguimento disto, o Ministério Público é notificado do recurso e pode pronunciar-se sobre o mérito desse recurso, mais uma vez, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, interesses públicos e ainda interesses difusos, nos termos do Artº. 146º, nº.1.
O Ministério Público pode, ainda, dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos previstos no Artº. 152º, nº.1, a)- e b)-. Estamos aqui, mais uma vez, perante um ónus por parte do Ministério Público, já que é de toda a conveniência os administrados poderem saber com o que contam e saber qual a decisão provável dos Tribunais sobre uma determinada situação. Está-se perante um caso de defesa dos interesses dos administrados, que, com esta solução, poderão contar aqui com uma segurança jurídica assinalável.
Por fim, pode ser pedido um recurso de revisão, previsto no Artº. 154º, cuja legitimidade, conforme o Artº. 155º, nº.1 também pertence ao Ministério Público.
O Ministério Público está representado, assim, em todos os Tribunais Administratativos, portanto, em todas as instâncias administrativas. O Artº. 4º, nº. 1, a)-, b)- e c)- do Estatuto do Minstério Público vem explicar como é aí representado.
O Artº. 51º, nº.1 do Estatuto vem explanar que podem ser criados departamentos de contencioso do Estado e o seu nº. 2 vem dizer que, entre outras, estes departamentos têm competência em matéria administrativa. O Artº. 53º daquele Diploma, vem dizer qual a competência destes departamentos, nomedamente, a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais (alínea a)-) e preparar, examinar e acompanhar formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado (alínea b)-). Estes departamentos serão criados em situações muito especiais e será o Conselho Superior do Minstério Público que fará essa proposta ao Ministro da Justiça que, através de uma Portaria, os criará (Artº. 53º, nº.3 do Estatuto). Trata-se, desta forma, de um poder bastante grande que o Conselho Superior do Minstério Público possui. É sua função e obrigação verificar onde serão necessários estes departamentos e, assim, fazer por impôr a sua necessidade, para melhor lidar com todos os problemas com que o Minstério Público se depara e aumentar a sua eficiência na defesa dos interesses cuja competência lhe pertence. No fundo, estão-se a dar meios mais apropriados e mais “próximos” do problema em questão.
De referir ainda que o Ministério Público, além de todas as suas competências e atribuições que aqui demos a devida atenção, pode, também, ele próprio, recorrer ao Supremo Tribunal Administrativo, por assuntos relativos ao que se passa na sua “própria casa”, ou seja, se apreciarmos o Artº. 23º do Estatuto do Ministério Público, verificamos que dos actos eleitorais para o Conselho Superior do Minsitério Público, pode ser interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Percebemos assim que o Minsitério Público, além de representar Estado e administrados, pode, ele próprio, ser parte activa numa acção, cujo interesse é única e exclusivamente, seu. Não faria sentido que fosse de outra forma, porque se pode recorrer no interesse “alheio”, também terá de o poder fazer, quando o interesse é próprio. Aliás, também isso poderá ser considerado como do interesse do Estado e dos administrados, porque, daí, advém a legitimidade e a transparência que permitem ao Ministério Público tratar das suas competências de forma cabal e séria, sem qualquer suspeição.
Pelo exposto, é fácil perceber que o Ministério Público tem um papel fulcral no contencioso administrativo, não só como representante do Estado, mas também como defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, tendo toda a liberdade para tomar as rédeas da defesa desses direitos, bem como dos chamados direitos difusos.



[1] Mário Aroso de Almeida,  Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, Almedina, 2010, pág. 556, onde afirma que a maior ou menor amplitude da intervenção processual do MP depende, em última análise, da interpretação que os seus magistrados façam quanto à relevância dos interesses em jogo e à intensidade da lesão provocada por situações de ilegalidade administrativa.

Rui Cruz
Nº. 18392

O Ministério Público no CPTA – Suas competências e suas atribuições (Parte I)



O Ministério Público é uma parte processual e tem as mais variadas competências e atribuições no seio do contencioso administrativo. Como tais competências e atribuições se revestem de suma importância em determinadas situações, faremos uma incursão pelo contencioso administrativo e trataremos algumas dessas competências e atribuições, tentando, de uma forma resumida, reunir o que de mais importante está reservado ao Ministério Público nesta área.
Comecemos por aquilo que está explanado no 219º da CRP. Logo no seu nº. 1, vêm descritas algumas da suas atribuições, nomeadamente a de representar o Estado, sendo uma espécie de advogado do Estado[1] e defender a lealidade democrática, nomeadamente, intervindo no contencioso administrativo e, ainda, defender os interesses que a lei determinar. Trata-se, assim, de um órgão que tem como uma das suas mais importantes funções a de representar o Estado em todas as situações em que este é parte.
O Artº. 51º do ETAF vem concretizar isso mesmo e determina que compete ao Ministério Público a representação do Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público. Assim, o Minstério Público representa o Estado em todas as acções em que, uma das partes, é o Estado, função esta que também se retira do Artº. 11º, nº. 2 do CPTA (doravante, toda a indicação de legislação que não inclua o Diploma, é do CPTA). Veja-se, a título de exemplo, as acções previstas no Artº. 2º, nº2, e)- ou f)-. O Estado é parte na acção, logo, os seus interesses são defendidos pelo Ministério Público. É essa uma das formas de defender o interesse público, mas há outras, como por exemplo, a acção de condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público, prevista no Artº. 37º, nº.2, g)-.
Verificamos aqui que o Ministério Público tem, também, um papel importantíssimo como defensor da legalidade[2].
Já o Estatuto do Minstério Público (Lei 47/86, de 15 de Outubro), no seu Artº. 1º vem concretizar estas competências e o Artº. 3º, nº.1, a)-, e)-, f)-, j)-, l)-, o)- e p)- vem explanar precisamente as competências que podem ser “transportadas” para o contencioso administrativo. Já no Artº. 5º, vem descrita a forma como o Ministério Público deve intervir nas causas onde participe.
Percebemos, assim, que uma das mais importantes funções do Minstério Público é, de facto, a representação do Estado em todas as acções em que seja parte e defender os seus interesses. No fundo, a representação do Estado significa, que lhe incumbe a tarefa de defesa dos interesses da comunidade em que se possa reconhecer cada um dos cidadãos e o povo em geral, não só porque se considera necessária essa incumbência, mas também porque ela se julga justa e adequada ao bem comum[3].
Neste âmbito, refira-se que o Ministério Público representava o Estado como pessoa colectiva pública, mas a Lei Quadro dos Institutos Públicos (Lei 3/2004, de 15 de Janeiro, republicada pelo DL 5/2012, de 17 de Janeiro) veio possibilitar que, e em moldes muito genéricos e sem qualquer limitação, possam solicitar ao Ministério Público que assegure a sua representação em juízo (Artº. 6º, nº.2, a)- e h)- daquele Diploma).
Mas existem outras atribuições. Veja-se o que vem explanado no Artº. 9º, nº.2. Cabe ao Ministério Público, entre outras entidades, propor ou intervir, mesmo sem ser parte interessada o Estado, em acções destinadas à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como o ambiente. A Lei 11/87 de 07 de Abril (alterada pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro - ETAF), vem criar a Lei de Bases do Ambiente e no seu Artº. 45º. nº.1 vem dar competências ao Ministério Público para defesa dos valores ambientais vertidos naquela Lei.
Já em relação a outros interesses constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o urbanismo, a qualidade de vida, etc., compete também ao Ministério Público zelar pela sua defesa, competência esta vertida em legislação específica.
Trata-se, por isso, de uma atribuição que existe e pela qual o Ministério Público, pode (e deve), se assim entender, propor uma acção para a defesa desses direitos fundamentais e outros. Estamos perante a acção popular, instituto este que está consagrado no Artº. 52º, nº.3 da CRP. Serve esta acção para defender os chamados interesses difusos. Temos, então, a função do Ministério Público como autor. Neste caso, estamos perante o autor público e esta acção pública constitui actualmente o principal poder de intervenção do Ministério Público, na sequência da reforma do contencioso administrativo, que revalorizou o respectivo papel de sujeito processual em detrimento da sua intervenção como “auxiliar do juiz”[4].
Neste campo, podemos invocar a Lei 83/95 de 31 de Agosto, que regula o  Direito de Participação Procedimental e Acção Popular. O seu Artº. 16º, vem reforçar os poderes de representação que o Minsitério Público possui e o nº.3, vem dizer que no âmbito da fiscalização da legalidade, poderá, querendo, substituir-se ao autor em caso de desistência da lide, bem como de transacção ou de comportamentos lesivos dos interesses em causa. Está aqui em causa o poder para avocar a si processos em que já tenha ocorrido uma desistência por parte do autor, prosseguindo ele próprio com a lide. É uma garantia de defesa dos administrados, em que, se de facto se aperceber que os interesses em causa não estarão a ser devidamente acautelados e que a desistência do processo não seja o melhor para a salvaguarda desses mesmos interesses, o Ministério Público pode (e deve) seguir com o processo.
Pode pôr-se aqui em causa se o Minsitério Público poderia, sendo ele próprio, uma autoridade pública, propor estas acções que serão avaliadas pelos Tribunais. Pela natureza política do direito de petição, tal entendimento deve ser positivo[5].
Aliás, esta era uma necessidade sentida há muito, de alargar o âmbito da legitimidade activa nas acções sobre contratos, para além das partes na relação contratual. Como os contratos em causa se inserem, designadamente no que diz respeito ao procedimento pré-contratual, num contexto regido por disposições e princípios de direito administrativo, impostos no interesse público e de terceiros, e o respeito de tais normas é sindicável pelo Ministério Público, justifica-se que este possa valer as invalidades que o contrato possa enfermar por violação de tais normas. Por outro lado, também a execução do contrato pode ser do interesse público[6].
Outra das possibilidades que o Ministério Público tem para propor acções é quando está em causa um pedido relativo à validade ou execução de contratos, conforme o Artº. 37º, nº.2, h)-, conjugado com o Artº. 40º, nº.1, b)- e nº.2, c)-[7]. Tratam-se aqui de situações, como é fácil de perceber em que uma das partes será o Estado e em que os interesses públicos tenham de ser defendidos.
De referir que, se o Ministério Público tem legitimidade para propor estas acções, então, também terá para propor providências, sejam elas cautelares, conservatórias ou antecipatórias. Isso mesmo vem previsto no Artº. 112º, nº. 1. Tem ainda legitimidade para impugnar actos administrativos, conforme o Artº. 55º, nº. 1, b)-. Mais uma vez, tal ocorre quando estiver em causa a defesa de direitos ou interesses legalmente protegidos (Artº. 51º, nº.1). De referir que o Minsitério Público tem um regime de excepção nesta matéria, porque o Artº. 58º, nº.2, a)-, prevê que a impugnação de actos anuláveis possa ocorrer no prazo de um ano, enquanto que nos restantes casos, esse prazo será de apenas três meses. Tal disposição existe porque o Ministério Público, como se percebe, tem inúmeros processos para dar atenção e não tem a disponibilidade para se debruçar apenas em assuntos específicos, como terão as associações ambientais, por exemplo, ou mesmo, os particulares. Parece ter sido objectivo do legislador permitir que o Ministério Público tenha mais tempo para, dessa forma, conseguir aperceber-se de quais as situações que, efectivamente, precisam da sua intervenção.
Importa referir ainda um outro poder do Minstério Público e que vem previsto no Artº. 62º, nº. 1, situação esta fora daquela que é específica da acção popular e que já em cima foi referida. Mesmo após a desistência pelo autor de uma determinada acção por si proposta, pode o Minstério Público, no âmbito do seu poder público, assumir a posição desse autor, requerendo o seguimento do processo. Claro que, para que isso possa ocorrer, têm de estar em causa e em apreço situações de interesse público. Se for um interesse particular, não existe qualquer legitimidade ao Minsitério Público para seguir com o processo e muito menos terá qualquer interesse nisso.


[1] Gomes Canotilho/Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 602.
[2] Vieira de Andrade – A Justiça Administrativa, 9ª Edição, Almedina, 2008, pág. 154.
[3] Gomes Canotilho/Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 603.
[4] Vasco Pereira da Silva – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição, 2009, Almedina, pág. 271.
[5] Gomes Canotilho/Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 694.
[6] Mário Aroso de Almeida – Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina, pág. 223.
[7] Mário Aroso de Almeida – Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina, pág. 229, afirmando que o CPTA introduz, neste preceito, a acção pública sem aparentes restrições, pelo que se deve entender que ela é estendida ao contencioso de impugnação dos contratos da Administração com a mesma configuração que tradicionalmente lhe corresponde no contencioso de impugnação de actos administrativos. O Ministério Público é, pois, admitido a impugnar todo e qualquer contrato, no único propósito de defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público.

Rui Cruz
Nº. 18392

Lei 34/2007 (Estabelece o regime especial dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar). Estará o seu Artº. 2º conforme ao Princípio da tutela jurisdicional efectiva? Uma opinião...


A Lei 34/2007 de 13 de Agosto veio estabelecer um regime especial dos processos relativos à aplicação de sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar (Lei Orgânica 2/2009 de 22 de Julho).
Trata-se aqui de um regime de excepção, provavelmente, devido ao facto dos militares terem, eles próprios, um regime forçosamente diferente dos demais cidadãos e até funcionários do Estado.
No entanto, é preciso verificar se esta situação permite a restrição de direitos de defesa só pelo facto de ser tratarem de militares e, por isso, decisões tomadas por militares.
O Artº. 2º da Lei 34/2007 de 13 de Agosto, com a epígrafe “Regime especial de suspensão cautelar de eficácia dos actos administrativos em matéria de disciplina militar”, explana: Quando seja requerida a suspensão de eficácia de um acto administrativo praticado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar, não há lugar à proibição automática de executar o acto administrativo, prevista no artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Como supra referido, estamos aqui perante um regime de excepção (até poderemos considerá-lo quase como um regime de favor) relativamente a decisões tomadas por militares com competência disciplinar no âmbito das suas funções. Será isto constitucional, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva?
Importa, assim, chamar à colação o estudo dos direitos fundamentais que levam ao princípio da tutela jurisdicional efectiva. Tal direito encontra-se explanado no Artº. 20º e no Artº. 268º, nº 4 e 5 da CRP. É que, apesar do Artº. 20º da CRP estar fora do catálogo dos seus direitos fundamentais, deve ser considerado com de natureza análoga, logo, é-lhe aplicável todo o regime dos direitos fundamentais previstos no Artº. 18º da CRP, por força do Artº. 17º da CRP[1]`[2].
Estamos perante um direito fundamental, logo, é de se aplicar aqui o regime dos Artsº. 12º e 13º da CRP, ou seja, o princípio da universalidade e o princípio da igualdade. Mesmo estando a falar-se de militares, os quais, devem ter um regime de excepção em determinadas situações, não devem os mesmos ser tratados como cidadãos de segunda classe, restringindo-lhes direitos fundamentais, como é o caso do seu direito de defesa, que é o que está aqui em apreço.
Pelo exposto, apenas se pode restringir este direito fundamental em situações muito especiais que não importa aqui curar. Mais, o direito à defesa não pode ser restringido em situação alguma.
Temos a concretização desse direito no Artº. 2º, nº.2 do CPTA.
Importa agora avaliar o que realmente está aqui em causa, com a proibição do Artº. 2º da Lei 34/2007 de 13 de Agosto. Proíbe-se a aplicação do regime do Artº. 128º do CPTA. Mas que regime é este e para que foi talhado?
O Artº. 128º do CPTA prevê uma medida de defesa contra actos administrativos emanados por entidade administrativa, ou seja, suspende a execução desses actos para, dessa forma, dar oportunidade a um Tribunal para avaliar todos os factos e tomar uma decisão que poderá culminar na efectiva suspensão da decisão anterior. Trata-se de uma providência conservatória em que o interessado pretende manter ou conservar uma situação em perigo, evitando que ela seja prejudicada por medidas que a Administração venha a tomar[3].
Estamos perante uma das maiores defesas que pode existir num contencioso administrativo, porque permite a apreciação de uma determinada situação por uma entidade completamente distinta daquela que tomou a decisão originária, salvaguardando-se, desta forma, uma transparência e uma imparcialidade que não poderiam ser garantidas de outra forma.
O que o legislador pretendeu aqui foi, de facto, salvaguardar o máximo possível, a defesa dos administrados em relação a decisões de entidades adminsitrativas, as quais podem padecer dos mais variados vícios ou ilegalidades. Quem melhor para decidr sobre essas situações que um Tribunal?
Então, se assim é, porque se restringe este direito? Não se percebe. Ao aprovar-se o CPTA e, por inerência, o Artº. 128º desse Diploma, o legislador cria um meio de defesa extremamente importante e útil mas, depois, vem retirar esse direito aos militares. E isto não se pode deixar de levar em conta, porque o Regulamento Disciplinar dos Militares implica uma pena de privação da liberdade, nomeadamente, a prisão disciplinar, prevista no Artº. 30º, nº1, e)- e Artº. 35º da referida Lei Orgânica 2/2009 de 22 de Julho. Será que esta decisão deve ser deixada, única e exclusivamente e sem mais, à entidade administrativa, ou melhor, aos Chefes de Estado-Maior? Sem qualquer desprimor por tais entidades, não parece que devam ter este poder de forma exclusiva, porque, como já foi em cima referido, só uma entidade externa, neste caso, o Tribunal, é que tem capacidade para avaliar de forma completamente imparcial aquela situação em concreto.
Imgine-se a situação em que um militar é punido com a pena de prisão disciplinar e depois, vem-se a verificar que ocorreram erros graves na avaliação dos factos. Como seria a situação desse militar depois de cumprida a pena? Será que uma mera indemnização seria suficiente para o ressarcir? Não parece.
Imagine-se ainda o caso das penas previstas no Artº. 30º, nº.2, a)- e b)- e Artsº. 36º e 37º do mesmo Diploma. Será que se deve demitir compulsivamente ou afastar o militar do serviço sem sujeitar o processo a uma avaliação de um Tribunal, ou seja, deixar que ela se cumpra, impossibilitando que seja exercido o direito explanado no Artº. 128º do CPTA? Não parece que isso possa acontecer. Se a decisão viesse a ser anulada, em contencioso administrativo, previsto no Artº 133º, nº.1 do mesmo Diploma, que situação teria sido criada ao militar ou aos seus familiares? Isto tem de ser salvaguardado.
É que, note-se, os militares já estão prejudicados em relação a outras classes idênticas, nomeadamente, a Polícia de Segurança Pública que, no seu Regulamento Disciplinar, aprovado pela Lei 7/90 de 20 de Fevereiro, tem previsto no Artº. 93º que, das decisões do seu Director-Nacional, cabe recurso hierárquico para o Ministro da Administração Interna. Em relação aos militares, o Artº 125º, nº. 2 do seu Regulamento Disciplinar vem explanar que, das decisões dos Chefes de Estado-Maior tomadas ao abrigo daquele Regulamento não cabe recurso hierárquico. Não se percebe qual terá sido a intenção do legislador, em dar tamanho poder às chefias militares que, por inerência da sua função, também terão a última palavra em matéria disciplinar, mas tal situação urge ser alterada, por estar, claramente, em causa, o direito de defesa dos militares, já que é mais um passo de defesa que está a ser suprimido.
E existem ainda outros problemas em relação a este diploma que em nada se coadunam com o princípio da tutela jurisdicional efectiva. Resultaram do facto de ter sido aprovado de forma extremamente rápida e após uma reacção das chefias militares pelo facto de, após a aprovação do CPTA, os militares terem recorrido ao contencioso para impugnar decisões em processos disciplinares de que haviam feito parte. No fundo, o que se explanou (no Artº, 4º. da Lei 79/2009, de 13 de Agosto, que veio concretizar o Artº. 7º do diploma em apreço) foi que, os assessores militares do Ministério Público, dão parecer não vinculativo, num prazo de 10 dias, relativamente à matéria em discussão naquele processo disciplinar. Ora, como é óbvio, nada disto vai a favor de uma situação de urgência, logo, também parece que, nesta situação, estão colocados em causa os direitos à tutela cautelar por parte dos militares lesados[4].
Como se trata de um regime relativamente recente, a jurisprudência ainda não se debruçou sobre esta temática do Artº. 2º desta Lei 34/2007 e o próprio Tribunal Constitucional, também não (desconhecendo-se se já foi solicitada a fiscalização desta norma) o que dificulta ainda mais perceber a ratio deste preceito ou se ele é, efectivamente, constitucional.
Pelo exposto e não se percebendo qual o objectivo do legislador nesta situação, até porque, não se compreende a necessidade de alterações com diplomas avulsos, que vai contra o propósito codificador do próprio CPTA[5], impõe-se uma alteração legislativa que, a nosso ver, estaria conforme à Constituição, isto é, concretizaria de forma muito mais satisfatória o princípio da tutela jurisdicional efectiva, que está explanado na nossa Constituição de forma muito clara.


[1] Gomes Canotilho/Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 373 e 374.
[2] No mesmo sentido – Suzana Tavares da Silva – Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efectiva dos administrados, em Revista de Direito Público e Regulação, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação, Faculdade de Direito de Coimbra, 2010, pág. 128.
[3] Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida – Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição( reimpressão), Almedina, 2007, pág. 64.
[4] Neste sentido, Mário Aroso de Almeida – Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina, pág. 498, citando em nota de rodapé (120), Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, que informa que a Lei 34/2007 surge na sequência de decisões judiciais na matéria – estamos perante uma “legislação provocada”, decorrente da necessidade política de garantir a especial autoridade dos actos de disciplina militar perante uma jurisprudência que ameaçava não ser sensível a essa diferença.
[5] Mais uma vez, neste sentido, Mário Aroso de Almeida – Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina, pág. 496.

Rui Cruz
Nº. 18392