Uma das principais inovações introduzidas pela reforma do contencioso administrativo, prende-se precisamente com os poderes atribuídos aos tribunais administrativos, nomeadamente a introdução do poder de condenar a Administração à prática de actos administrativos, bem como a substituição da anulação dos mesmos actos pelo poder de condenação à prática do acto devido, valendo, implicitamente, tal condenação como anulação. [1]
De acordo com o artigo 71º/1 do CPTA, quer em caso de omissão de resposta, quer em caso de recusa por parte da administração ao requerimento apresentado, o tribunal tem a obrigação de se pronunciar sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido, não se limitando a devolver a questão à administração.
Desta forma o tribunal irá, no fundo, avaliar a relação administrativa que existe entre o particular e a Administração através de um juízo material sobre o litígio, por forma a apurar qual o direito do primeiro e qual o dever da segunda.
É preciso ter em conta que, à partida, o tribunal deve deixar o exercício dos poderes discricionários pertencentes à Administração nas mãos desta, de modo a assegurar o princípio da separação de poderes.
Contudo, este poder discricionário, da exclusiva responsabilidade da Administração, que deve ser encarado casuisticamente, não deve porém ser livre ao ponto de não lhe ser imposto limites pelo tribunal, nomeadamente no que diz respeito a certos princípios e aspectos, tais como a competência, a proporcionalidade, a igualdade ou a imparcialidade, bem como determinar concretamente qual o âmbito e limites das vinculações legais.
A discricionariedade pode ser entendida como a liberdade, conferida à Administração, de decidir dentro do quadro das limitações que lhe são impostas legalmente.
Desta forma, são indispensáveis e necessárias as sentenças de condenação sempre que se esteja perante uma acção de condenação.
No final do nº 1 do artigo 71º CPTA, aparece a frase “impondo a prática do acto devido”. Neste âmbito, releva indagar acerca do significado deste acto devido.
Seguindo o entendimento de Mário Aroso de Almeida[2], podemos considerar dois parâmetros orientadores:
- > Em primeiro lugar, para haver condenação, será necessário que a recusa ou omissão do acto tenha sido ilegal. Esta condenação será proferida quando a lei assim o impuser ou quando o tribunal considere que a Administração terá imperativamente que agir, de acordo com a pretensão do autor do pedido.
- > Em segundo lugar, a condenação à prática do acto devido, não tem que corresponder estritamente à condenação à prática de um acto que esteja pré-determinado na lei, uma vez que também será possível condenar a Administração à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, desde que a emissão dos mesmos seja devida.
De acordo com o disposto no nº2 do artigo 71º CPTA, incumbe ao tribunal nas situações em apreço, explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva [3], são duas as principais modalidades de sentenças que resultam do pedido de condenação à prática do acto devido:
- > As que condenam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é determinado pela sentença. Estas sentenças impõem à Administração a prática de um acto administrativo devido, com um conteúdo pré-determinado.
- > As que condenam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é indeterminado dado que estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração mas em que o tribunal deve indicar a forma correcta de exercício do poder discricionário, ao caso concreto, estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão.
Posto isto, como forma de tentar demonstrar como se pode aplicar, na prática, o disposto no artigo 71º CPTA, será feita uma breve análise de dois Acórdãos, sendo o primeiro um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul[4], cujo sumário expõe o seguinte:
Dos arts. 71º e 66º-2 do CPTA resulta o seguinte:
a) Rejeição do modelo cassatório, porque há uma imposição legal para emitir certa decisão;
a) Rejeição do modelo cassatório, porque há uma imposição legal para emitir certa decisão;
b) O juiz deve se pronunciar (quase sempre?) sobre a pretensão material do interessado, seja no caso de omissão, seja no de indeferimento, seja no de recusa expressa de apreciação (afinal, o dever de decidir é um só, mas pode ser tripartido em dever de decidir de acordo com a pretensão, dever de decidir sobre o objecto da pretensão e dever de decidir sobre a pretensão);
c) O caso concreto tanto pode permitir ao juiz que imponha à Adm. que decida com certo conteúdo, como pode permitir ao juiz que imponha à Adm. apenas que decida dentro de certos parâmetros vinculados (normas ou princípios aplicáveis, sentido interpretativo, fundamentação, etc.), como pode até chegar ao ponto mínimo de permitir ao juiz que imponha à Adm. apenas o cumprimento do dever de decidir ou de se pronunciar.
Resumo do Acórdão em questão:
Nesta situação estava em causa a pretensão de um particular à condenação da Administração à prática de um acto devido, no sentido de obter resposta ao direito que solicitava, pelo que o T.A.C. de Lisboa, decidiu condenar a Entidade Demandada a dar resposta fundamentada ao requerimento da autora.
A ré recorre para o Tribunal Central Administrativo Sul, da decisão proferida anteriormente pelo T.A.C de Lisboa, entendendo que o T.A.C de Lisboa não a poderia condenar a apreciar, porque a decisão material seria sempre de indeferimento.
O TCA Sul, porém, entendeu que a ré tem o dever legal de apreciar o pedido da autora, dever esse que foi violado.
Contudo, uma vez que não houver pronúncia administrativa expressa, não é possível ponderar no seu conteúdo necessariamente negativo no sentido de se concluir que não haveria necessidade de pronúncia expressa.
Como se verifica no caso em análise, o Tribunal impôs à Administração a prática do acto devido, admitindo ainda a possibilidade de apreciação da globalidade da relação administrativa, não podendo contudo fazê-lo enquanto a Administração não der uma resposta ao autor do pedido.
O segundo Acórdão, é um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte[5], cujo sumário explana o seguinte:
I. O quadro legal definido no art. 106.º do RJUE, tal como acontecia com o regime jurídico fixado nos arts. 165.º e 167.º do RGEU, pauta-se pelo princípio da proporcionalidade, numa lógica de impor ao infractor o menor sacrifício possível, não se podendo ordenar a demolição de obras que, apesar de ilegalmente construídas, cumprem as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis, ou são susceptíveis de os vir a satisfazer.
II. Tal significa que a demolição das obras ilegais tem de ser precedida por um juízo relativo à possibilidade das mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.
II. Tal significa que a demolição das obras ilegais tem de ser precedida por um juízo relativo à possibilidade das mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.
III. Este regime não elege, assim, em caso de obra construída ilegalmente, a demolição como a única medida capaz de satisfazer interesse público visto prever o aproveitamento da construção, desde que a Administração reconheça que a mesma é susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares legalmente previstas para aquele local e tipo de edificação, salvaguardando-se, desta forma, não só as obras que, sem mais, cumpram aqueles requisitos, mas também as que, com modificações, possam vir a satisfazê-los.
IV. A Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, for passível de ser legalizada.
V. Consolidados todavia na ordem jurídica actos ordenadores da demolição de construções realizadas, nos quais se conclui pela insusceptibilidade ou inidoneidade de legalização, temos que o poder de ordenar a demolição e da levar a cabo se mostram ou se apresentam como vinculados, pelo que não faz sentido procurar-lhe imputar ilegalidades próprias daquele tipo de actos inseridos na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa”, mormente, a infracção ao princípio da proporcionalidade.
VI. O poder de ordenar a demolição apresenta-se como vinculado logo que se mostre reconhecida a inidoneidade ou impossibilidade da operação de conformação do edificado com o quadro normativo tido por relevante e aplicável ao caso, poder esse
IV. A Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, for passível de ser legalizada.
V. Consolidados todavia na ordem jurídica actos ordenadores da demolição de construções realizadas, nos quais se conclui pela insusceptibilidade ou inidoneidade de legalização, temos que o poder de ordenar a demolição e da levar a cabo se mostram ou se apresentam como vinculados, pelo que não faz sentido procurar-lhe imputar ilegalidades próprias daquele tipo de actos inseridos na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa”, mormente, a infracção ao princípio da proporcionalidade.
VI. O poder de ordenar a demolição apresenta-se como vinculado logo que se mostre reconhecida a inidoneidade ou impossibilidade da operação de conformação do edificado com o quadro normativo tido por relevante e aplicável ao caso, poder esse
que se configura ainda como imprescritível visto do seu não exercício não cria ou confere direitos, nem pode conduzir à extinção dos respectivos poderes funcionais visto estarem em causa interesses públicos irrenunciáveis e indisponíveis.
VII. Os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP.
VIII. Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos, inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado, ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, etc.).
IX. Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.
VIII. Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos, inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado, ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, etc.).
IX. Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.
Resumo do Acórdão:
No caso em apreço, num primeiro momento, o TAF de Penafiel julgou procedente a acção de condenação em causa e condenou o Município “a dar executoriedade à demolição, no prazo de 10 (dez) dias úteis a contar do trânsito em julgado deste acórdão, proferindo um acto determinativo da posse administrativa do prédio da Contra-interessada ou qualquer outro acto, desde que, com aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela da legalidade urbanística …”.
Posto isto, o Município recorreu, alegando para tal, entre outros aspectos, que o tribunal “violou ainda o disposto no artigo 71.º, n.º 2, in fine, do CPTA, em virtude de não ter estabelecido as modalidades de actuação vedadas e apreciado a legalidade das questões prévias que fundamentaram e impediram a execução da demolição, condenando a autarquia à prática de um acto que não é vinculado e se enquadra na sua margem de discricionariedade, e abrindo a porta à discricionariedade onde deveria ter estabelecido vinculações a observar, determinando a prática de qualquer acto, com o único limite deste ter aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela administrativa …”.
O Tribunal Central Administrativo Norte, no âmbito do recurso, considerou que a decisão judicial impugnada não infringe o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CPTA, dado que a mesma mostra-se claramente proferida em consonância com os poderes administrativos conferidos na lei à Administração em sede de tutela da legalidade urbanística e em estrita observância dos limites de pronúncia conferidos ao tribunal “a quo”, pois, por um lado, atentou e considerou a margem de discricionariedade existente na opção entre as medidas de polícia urbanística tidas por mais adequadas, necessárias e proporcionais à situação e, por outro lado, na vinculação que impende sobre a Administração decorrente dos actos de demolição firmados na ordem jurídica enquanto caso resolvido e do dever de necessária implementação e concretização material em prazo razoável.
Do exposto podemos retirar algumas conclusões.
O Tribunal tem poder para apreciar a globalidade da relação administrativa e dessa forma também a totalidade do poder administrativo, considerando, quer elementos vinculados, quer discricionários, de modo a determinar e orientar a actuação da Administração.
É preciso ter em conta, tal como nos diz o Acórdão do TCA Norte, que a lei não regula sempre do mesmo modo os actos a praticar pela Administração, pois umas vezes a regulamentação legal é precisa (vinculação) e noutras é imprecisa (discricionariedade).
No mesmo Acórdão, o Tribunal consagra duas formas de limitação da discricionariedade da Administração:
- > Uma primeira por intermédio de limites legais, nos quais se incluem:
. a) A adequabilidade subjectiva do comportamento escolhido à realização do fim legal (o interesse público como meta padrão da escolha discricionária) (art. 266.º, n.º 1 da CRP);
. b) O princípio da justiça que se traduz no dever da Administração harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados (art. 266.º, n.º 2 da CRP); e
. c) O princípio da imparcialidade (art. 266.º, n.º 2 da CRP).
. a) A adequabilidade subjectiva do comportamento escolhido à realização do fim legal (o interesse público como meta padrão da escolha discricionária) (art. 266.º, n.º 1 da CRP);
. b) O princípio da justiça que se traduz no dever da Administração harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados (art. 266.º, n.º 2 da CRP); e
. c) O princípio da imparcialidade (art. 266.º, n.º 2 da CRP).
- > Uma segunda forma por força dos limites decorrentes da auto-vinculação que a Administração, no âmbito estrito das suas competências, cria com a elaboração de regulamentos externos pelos quais limita a sua própria discricionariedade, sendo que, no entanto, tal auto-vinculação só é legítima e válida quando não impeça a Administração Pública da ponderação do caso concreto enquanto liberdade concedida pela lei para discricionariamente prosseguir o interesse público.
Como refere a este propósito o Professor Vasco Pereira da Silva[6], as indicações quanto ao modo correcto de exercício do poder discricionário devem significar menos do que o tribunal substituir-se às escolhas da responsabilidade da Administração, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, mas devem ser também mais do que uma mera enumeração das vinculações legais à qual a Administração está sujeita, sob pena de violação do princípio da tutela judicial plena e efectiva, devendo o tribunal apreciar as vinculações que decorrem do ordenamento jurídico, casuisticamente, tendo em conta as circunstâncias de facto que rodeiam o caso em questão.
[1] Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida; GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO; 3ª Edição; 2007; pág. 118.
[2] Mário Aroso de Almeida; O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; 4ª Edição; 2005, Pág. 225.
[3] Vasco Pereira da Silva; O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NO DIVÃ DA PSICANÁLISE; 2ª Edição, 2009,Pág. 392.
[4] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 01-03-2012; Processo 05821/10; Relator: PAULO PEREIRA GOUVEIA.
[5] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 27-05-2010; Processo 00240/08.4BEPNF; Relator: Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho.
[6] Vasco Pereira da Silva; O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NO DIVÃ DA PSICANÁLISE; 2ª Edição, 2009,Pág. 394.
Filipe Santos, aluno nº 18132