domingo, 18 de março de 2012


Uma reflexão crítica acerca da garantia da tutela jurisdicional efectiva à luz do artigo de Suzana Tavares da Silva "Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efectiva dos administrados".


“A todos é constitucionalmente garantido o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos afectados por quaisquer actos de particulares ou do poder estadual, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”. É deste modo que a Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 20º, o direito fundamental de acesso aos Tribunais. Trata-se de uma protecção jurisdicional ampla, que impede a existência de actos insusceptíveis de controlo por parte dos tribunais assim como garante que os cidadãos beneficiem de um processo justo e equitativo.
Este direito à efectivação jurídica dos direitos e interesses jurídicos são específica e constitucionalmente concretizados no que toca ao cidadão na veste de administrado: não só a IV Revisão Constitucional (1997) garante aos “administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas” (art.º 268.º, n.º 4), como consigna que os “cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 268.º, n.º5 CRP)
                Mas porquê a necessidade desta autonomização?  
É certo que à primeira vista esta autonomização não é excepcionalmente relevante, por não trazer nada de novo ao artigo 20º CRP. No entanto, e em consequência do traumático passado do contencioso administrativo e do seu modelo objectivista, o legislador considerou necessário enfatizar a protecção dos direitos e interesses dos particulares/administrados face a uma entidade dotada de poderes de autoridade.
Apesar desta preocupação do legislador em colocar no centro do processo administrativo o principio da protecção plena e afectiva dos direitos dos particulares e consagrar um sistema de plena jurisdição,  afastando-se assim  do traumático modelo objectivista, após analisarmos a realidade do nosso contencioso administrativo, percebemos que ainda estamos no início do processo de tratamento e poderá levar algum tempo até à sua total recuperação.
Assim, e com base no artigo da Dra. Suzana Tavares da Silva (na Revista de Direito Público e Regulação), iremos proceder a uma análise objectiva de algumas questões que a garantia da tutela jurisdicional efectiva suscita.

A “Garantia” transmite a ideia que o particular não goza apenas de um direito, mas de um direito fundamental e assim o é de facto. O artigo 268 nº4 tendo natureza análoga aos Direitos Liberdades e Garantias, permite a aplicabilidade directa decorrente da aplicação do artigo 18º CRP.
Assim, mais do que accionar os meios de defesa dos direitos e interesses quando não existe lei concretizadora, esta garantia permite afastar essa lei quando limita esses mesmos direitos. Ou seja, podemos recorrer directamente à norma constitucional para conseguirmos o que a lei não consagra ou para alcançar o que nos foi negado no plano legislativo.

Relativamente à “Tutela”, podemos defini-la como sendo a função de protecção da norma que tem implícito o reconhecimento de um núcleo de protecção subjectiva pública.
Tem-se vindo a assistir a um aumento do rol dos direitos interesses legalmente protegidos que se manifestam, por exemplo, no conjunto de prestações e serviços fornecidos pelo mercado que, correspondendo ao conteúdo mínimo de existência condigna, o Estado garantidor é obrigado a proporcionar, através de regimes jurídicos que garantam a efectividade das prestações de serviços essenciais pelos operadores de mercados. 
A questão coloca-se na possibilidade de os consumidores desses serviços poderem impugnar as normas ou medidas regulatórias que ponham em causa a garantia de protecção dos seus direitos.
Utilizando o exemplo do sector eléctrico, através da análise da legislação correspondente, percebemos que o legislador coloca os litígios que envolvem os utentes dos serviços essenciais no direito privado, não podendo assim assegurar imediatamente a tutela dos respectivos direitos e interesses.
Qual seria então uma possível solução para os utentes dos serviços essenciais verem os seus direitos e interesses directamente tutelados?
Devemos afastar desde já a possibilidade de utilizarem a impugnaçao de normas ou actos pois a actividade reguladora dificilmente se caracteriza como acto normativo e sendo o pedido de ilegalidade de normas muito limitado, seria difícil fazer valor os seus direitos. Acresce a dificuldade de a jurisprudência não conceber os regulamentos aprovados pelas autoridades reguladoras como normas imediatamente operativas em relação aos utentes não se podendo valer do 73 nº2 CPTA.
A solução poderia passar por considerar os regulamentos aprovados pelas autoridades reguladoras como uma terceira categoria – medidas regulatórias – que não sendo regulamentos, podem incluir-se na categoria dos actos administrativos gerais e deste modo poderia haver controlo administrativo.
Não sendo esta situação aceite outras poderia ser encontradas (como a condenação da entidade reguladora em sede de acção administrativa comum – 37ºCPTA) mas não seria certo o sucesso pois as exigências do processo não o admitem.
Podemos afirmar que o grande problema deve-se à arrumação jurídico-dogmática dos regulamentos das autoridades administrativas reguladoras (devido à independência das mesmas), já que na verdade são um conjunto de medidas concretas para a organização e funcionamento dos mercados e bens e serviços essenciais ao bem-estar da população e ao funcionamento da economia, e portanto são expressão de uma função administrativa pura e desse modo seria possível o utente do serviço essencial atacar directamente o regulamento.
Outra questão ainda relacionada que pode ser levantada, é a possibilidade de estender a acção popular social (9 nº2 CPTA) aos consumidores para impugnar decisões administrativas no âmbito da actividade reguladora dos mercados. Estando em causa a protecção da qualidade de vida, um bem constitucionalmente protegido, enquanto concretização do mínimo de existência condigna, a doutrina não hesita em afirmar que a tutela judicial efectiva em matéria administrativa também abrange a protecção do interesse público.
Por último, refiro apenas o problema de abuso de tutela judicial que tem lugar, por exemplo, na garantia do acesso à informação que é excessivamente permissivo, por via do processo urgente.

                O conceito “jurisdicional” remete-nos para a intervenção de um órgão jurisdicional, o Tribunal.
Além deste elemento institucional, a tutela depende de leis processuais adequadas para garantir os poderes de pronúncia, assim como a execução das decisões em tempo útil, com base numa decisão fundada no direito correspondente e através de um processo justo.
Propomo-nos aqui a apresentar propostas no sentido de uma maior economicização e tecnicização do contencioso administrativo.
É do nosso entender que o meio mais apropriado para o objectivo proposto, é a recuperação e desenvolvimento de um controlo extrajudicial prévio, sendo o controlo judicial um controlo de segunda linha. Este controlo prévio seria obrigatório naquelas decisões administrativas de base técnica e económica de modo a que, quando a questão é colocada ao tribunal, este possa subordina-la aos testes típicos do controlo judicial no âmbito da jurisdicionalidade técnica
Apesar de se poder dizer que a discricionariedade técnica nem sempre é o melhor caminho, é certo que não se pode continuar a pensar na administração em termos clássicos sendo já exemplo de outros ordenamentos jurídicos internacionais e supranacionais o bom funcionamento dos novos procedimentos em áreas especializadas.

Por último, o a tutela "efectiva", relaciona-se com a efectividade das decisões do juiz, ou seja, sublinha a necessidade de garantir a execução das sentenças judiciais num determinado prazo assim como os limites aos poderes de cognição em virtude dos espaços de livre apreciação da administração.
Estas duas situações foram acauteladas aquando da reforma nos artigos 37 nº2 c) e d), 71 nº2, 167 nº1,168 e 169º CPTA.
No entanto, ficou por resolver um problema relativo à administração da justiça. Referimo-nos ao tempo que demora uma decisão do tribunal a transitar em julgado.
Para fazer face a este problema, propõe-se soluções alternativas de resolução de litígios, como a arbitragem e a mediação.
A efectividade é assegurada, em ultimo lugar, pela responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício quando resulta violação de direitos, liberdades e garantias (22ºCRP e regime legal concretizador).


Assim, apesar dos grandes avanços do contencioso administrativo, conseguidos através da reforma, ainda existem alguns aspectos a melhorar de forma a os particulares verem os seus direitos e interesses protegidos.
É de louvar todos os esforços conseguidos no sentido dessa protecção (como podemos verificar pelos exemplos positivos) mas também, percebemos que a garantia da tutela judicial efectiva ainda não é uma realidade absoluta que necessita de ser aperfeiçoada em algumas áreas.
Apenas em jeito de propostas, e ainda com base no texto da autora, uma das áreas a intervir seria em matéria de controlo da actividade administrativa que integra o controlo judicial e todas as outras formas de garantia dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados, devendo-se arranjar mecanismos menos complexos para reduzir a litigiosidade.

Concluo relembrando que a reforma do Contencioso Administrativo português nasceu a partir do diagnóstico, feito pela doutrina, com a colaboração da jurisprudência, de uma situação crítica insustentável, decorrente da não superação dos traumas muito profundos de uma infância difícil cujos efeitos se prolongam no tempo. A terapia encontrada passou, como já percebemos, por uma revolução da sua lógica através de um teor subjectivista.  
Considero que hoje, perante o actual quadro normativo vigente, estamos perante um rumo de mudança que se faz progressivamente e portanto talvez o que o que hoje apresentamos aqui como ilustração das falhas do nosso contencioso administrativo, amanhã poderá fazer parte do passado do mesmo.


Bibliografia:
×           Silva, Susana Tavares da, “Revisitando a garantia da tutela jurisdicional efectiva dos administrados” em “Revista de Direito Público e Regulamentação”; nº5, 2010. 
×           Silva, Vasco Pereira da, O “contencioso administrativo no divã da psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”; 2ª edição, Almedina, 2009.



Daniela Romeiro
Nº 18095